sábado, 26 de março de 2011

A desigualdade linguística no mundo

Fortaleza, 03 de agosto de 2002

Como geralmente em todos os anos desde 1905, ocorre o assim denominado “Congresso Mundial de Esperanto”, o maior evento em Esperanto, onde se discutem os desafios enfrentados pela língua internacional. Neste ano, em Fortaleza, estiveram 1500 delegados de organizações de falantes do Esperanto de mais de 60 países, que animadamente discutiram – sem intérpretes e sem o inglês – a ameaça de uma catástrofe lingüística neste início do século 21: cerca de 90 % das 6.000 línguas faladas, ao que parece, não sobreviverão neste século. Por ocasião do congresso, o presidente da Associação Mundial de Esperanto, Renato Corsetti, professor de lingüística da Universidade de Roma alertou sobre os custos sociais e econômicos para o Brasil e para a América Latina referentes à desigualdade lingüística.

SOBRE A IGUALDADE LINGÜÍSTICA:
A desigualdade lingüística proporciona grandes lucros a determinados países e grupos sociais. Os brasileiros, entretanto não começaram a calcular os custos sociais e econômicos causados pela desigualdade lingüística nos mais variados campos como, por exemplo, nos meios de comunicação, na exploração científica, na educação e no comércio.
Devido à desigualdade lingüística pelo mundo, uma língua morre a cada duas semanas. Se não houver uma mudança radical na política lingüística, cerca de 90% das 6.000 línguas do mundo não mais serão faladas nos próximos 100 anos. Nunca na história da humanidade desapareceram tantas línguas. Na África, 600 das 1.400 línguas estão ameaçadas de desaparecer devido à pressão das “grandes” línguas. Apenas 20 línguas na Austrália ainda sobrevivem das 250 línguas faladas no final do século 18. Na Índia, colônia britânica durante séculos, a desigualdade lingüística ainda esmaga as mais de 1.600 línguas nacionais. Depois de mais de 50 anos da independência, o inglês permanece como a língua do poder, mas falada por menos de 2% da população. Depois do inglês, é o idioma hindu, que conjuntamente comprimem outros 18 idiomas “grandes”, 400 outros “catalogados” e um impreciso número de outros idiomas. Em muitos países da América do Sul, temos a impressão que os governos estão esperando que os 275 idiomas “não oficiais” desapareçam antes que eles se tornem idiomas de ensino oficiais. Hoje, no Brasil, uma longa lista de idiomas do ACROÁ ao YABAÂNA não são mais falados. Será que em breve outros idiomas como o AMANAYÉ e o YAWANAWA também não serão mais ouvidos?
Ao mesmo tempo, e também principalmente devido à desigualdade lingüística, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo gastam cerca de 50 bilhões de dólares para aprenderem a língua mais poderosa do mundo, o inglês. Apesar deste sucesso econômico, o British Council, por exemplo, ainda se preocupa com a decrescente queda de arrecadação no ensino do idioma inglês em diversos países. Os habitantes do norte da Europa conhecem tão bem o inglês que cada vez mais diminui a presença deles entre as 700.000 pessoas que anualmente, pagam para fazer um curso de inglês na Inglaterra. Saibam que em média, os estudantes que fazem um curso básico de inglês, permanecem 30 dias na Inglaterra e gastam em média 200 euros. O British Council calcula uma receita de quase 100 milhões de euros dos países da América Latina graças às 24.000 “visitas” para cursos de inglês e uma tendência de despesas duas vezes mais alta dos habitantes destes países. Também no Brasil, empresas inglesas e norte-americanas esperam “vender” mais cursos de inglês. Durante a crise econômica, a concorrência no mercado de trabalho favoravelmente age sobre conhecimentos “necessários” como o do inglês e faz do Brasil um excelente mercado para o idioma inglês. Quanto o Brasil paga para aprender inglês, não se sabe exatamente, devido à falta de boas estatísticas.
O Brasil ainda paga às universidades de fala inglesa. Dos 550.000 estudantes estrangeiros durante o último ano letivo das universidades de fala inglesa, 64.000 eram da América Latina. Entre eles quase 9.000 brasileiros.
Logicamente os brasileiros são ambiciosos e alvejam o mercado de trabalho nos Estados Unidos. Logicamente o sistema de educação brasileiro prepara um pequeno exército dos mais talentosos estudantes para os Estados Unidos. Para provar aos futuros patrões um conhecimento quase que “de nascença” do inglês e o domínio de “modernos” métodos de trabalho, um ambicioso brasileiro precisa de um diploma de uma universidade de fala inglesa.
A adoção do inglês, como língua de ensino na América Latina absolutamente não “reequilibra” a desigualdade entre sistemas educativos de países de fala inglesa e a América Latina. É tão mercantil o sistema comercial norte-americano no Brasil que os pais e estudantes preferem universidades e países “verdadeiros” de fala inglesa. Mesmo que se a América Latina ou o Brasil tenham boas universidades, elas perdem continuamente mais de 70.000 estudantes para os paises de fala inglesa. Estudantes estrangeiros são grande fonte de riqueza. Cada um anualmente paga cerca de 25.000 dólares para moradia, mensalidades e despesas escolares em países como os Estados Unidos, Inglaterra e Austrália. Assim, eles ao mesmo tempo sugam talentosos estudantes e recursos do sistema de educação do Brasil.
Tão lucrativa é a “indústria da educação” em fala inglesa, que a Nova Zelândia, por exemplo, introduziu um imposto específico que incide sobre os cursos. Graças a esta indústria, os Estados-Unidos arrecadou cerca de 12,3 bilhões de dólares. Trata-se de uma evasão de riquezas dos países de língua não inglesa e por isto que norte-americanos e ingleses, pelo fato de não conhecerem outras línguas, muito raramente estudam no exterior. Também o grave é a perda de talentos, como mostra o estudo da OECD; “The Mobility of Highly-skilled Workers”, publicado em janeiro de 2002. Os mais talentosos estudantes estrangeiros na Austrália, Estados Unidos e Inglaterra recebem propostas de trabalho e assim, são perdidos, freqüentemente durante décadas sem ajudar na evolução social e econômica de seus países de origem. Esta perda de talentos mundiais, que o Brasil também sofre é conseqüência direta da dominância do idioma inglês.
Apesar destes imensos investimentos pessoais dos brasileiros no idioma inglês, organizações e empresas internacionais discriminam aqueles que não falam o inglês perfeitamente ou “de nascença”. Para as organizações internacionais nas quais o Brasil também é membro, não mais se reclama devido aos constantes anúncios de empregos para falantes “de nascença” do inglês. Não se trata de exigir um “conhecimento excelente” ou “perfeito domínio” de uma língua, mas de sua origem social ou nacional: mesmo que você fale excelentemente, perfeitamente e quase sem erros o inglês, você não seria aceito nestes empregos. Durante os últimos anos, a Associação Mundial de Esperanto selecionou mais de 500 ofertas de empregos destinadas apenas para falantes “de nascença” do idioma inglês. A discriminação lingüística feita por firmas e organizações – e também pela Organização Internacional do Trabalho, pelo Alto Comissário para os Direitos Humanos da ONU , pela Organização Mundial do Turismo, pela Organização Mundial da Saúde e por outras organizações das Nações Unidas, indicam uma das mais graves violações às outras línguas; esta desvalorização social e econômica pelo mundo em virtude da desigualdade lingüística. Até mesmo uma empresa no Brasil começa a preferir apenas aquelas pessoas que falam bem o inglês, os candidatos que estudaram em escolas e universidades de fala inglesa e que por isto, quase que perfeitamente dominam o inglês. Pelo mundo, o custo da desigualdade lingüística é visível em muitos outros campos. Faltam estatísticas sobre muitos países. Infelizmente, a maior parte dos governos e também os governos do Brasil, preferem pagar bilhões para ensinar o inglês para as crianças e para os funcionários públicos a colher seriamente estatísticas sobre a desigualdade lingüística nas mais diversas indústrias e especialidades. Peguem o caso da indústria do cinema e da televisão. No último ano, os 20 filmes mais vistos nos cinemas do mundo foram norte-americanos ou produzidos em conjunto com norte-americanos. Em escala européia, os ainda lingüisticamente orgulhosos países de fala não inglesa da União Européia compraram 10 bilhões de euros mais de filmes, seriados de televisão, vídeos e outros produtos de áudio e vídeo em inglês do que eles venderam para a Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Inglaterra e Estados Unidos. Nos paises da União Européia de fala não inglesa, mais de 75% das emissões televisivas e filmes são produzidos em países de fala inglesa. O inglês, então, efetivamente exterminou a indústria cinematográfica comercial em muitos países. Vocês poderão rir, pois já se acostumaram com a falta da indústria cinematográfica nacional. Saibam que há apenas 30 anos, no meu país, a Itália, a gente se orgulhava da então florescente indústria cinematográfica italiana. No último ano, apenas cinco dos 20 filmes mais vistos na Itália não eram norte-americanos.
Através dos meios de comunicação, o inglês tanto pressiona que agora é possível notar uma rápida mudança até nas mais usadas palavras de nossas línguas. Na França se fala em “e-mails”, “weekend”, e não “courriel” ou “fin de semaine”. Na Alemanha os jovens são “cool” e certamente não “lässing”. No Brasil os clientes do banco usam o “cash dispenser” e não o caixa eletrônico. Esta dominação cultural – e não se trata de “enriquecimento recíproco” - se evidencia no fato de que hoje, o inglês cada vez menos incorpora palavra de outras “línguas grandes” como o espanhol, o alemão ou o francês. O crescente uso de palavras inglesas em outras línguas não incomoda apenas lingüistas puristas. Isto é uma indicação confiável do grau de desigualdade lingüística nos mais variados setores. Devido à pressão do inglês, por exemplo, o ensino em inglês substitui ensinos nos idiomas nacionais em universidades pelo mundo. A Malásia e Indonésia, depois de promoverem e zelarem pelos seus idiomas nacionais durante anos, não mais ensinarão disciplinas científicas em idiomas nacionais, mas apenas em inglês.
Apesar de tais evidentes custos do idioma inglês, falar sobre igualdade lingüística é um tema difícil. Os políticos publicamente “lutam” apenas em prol da própria língua e muito freqüentemente contra outras “pequenas” línguas. Sem raciocinar, as elites brasileiras adotam o inglês em diversos setores, e silenciosamente ou em voz alta acusam os defensores de outras línguas de serem nacionalistas. Quando se fala sobre idiomas, prefere-se ao que parece, uma linguagem militar de “batalha para defender o português” ou de “contra-ataque do português”. Entretanto, nunca foi tão necessária uma política lingüística com base na igualdade de todas as línguas e seus falantes. Nunca foi tão necessária a concreta ação de cidadãos e políticos pelo mundo por um sentimento de solidariedade lingüística. Infelizmente, hoje em todo lugar prevalece a concorrência daqueles indivíduos que melhor dominam o inglês, em detrimento daqueles que “apenas” sabem falar outras “línguas pequenas”. E no interior do país, o português devora a diversidade lingüística*.
Sem uma política lingüística consciente e ativa, o mundo caminhará para uma sociedade separada, de um lado, por uma elite que perfeitamente, de maneira excelente ou “de nascença”, domina o inglês e de outro lado dos outros, que sabem falar as outras línguas. Nesta procura por uma igualdade lingüística, fácil de ser aprendida, uma língua não étnica como o centenário Esperanto certamente auxiliaria. Entretanto, apenas o respeito à diversidade e igualdade lingüística garantirá o futuro de nossas 6.000 línguas e a igualdade de tais falantes. Sem tal respeito às línguas, verdadeiro e diário – e não com os discursos eloqüentes - os cidadãos do mundo enfrentarão séculos de discriminação lingüística. Tenhamos a coragem de dizer que as pessoas têm direitos iguais, e suas línguas também têm valores iguais. Afirmemos que a desigualdade lingüística é não apenas artificial como também uma justificativa da desigualdade.

Renato Corsetti
presidente da UEA (Associação Mundial de Esperanto)
(www.uea.org)

Traduzido por João Manoel Aguilera Junior, delegado da UEA no Brasil do texto escrito originalmente em esperanto.

*Nota do tradutor: o autor se refere ao fato que as línguas indígenas no Brasil estão desaparecendo devido á pressão do português.

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